A Justiça como espetáculo na era da tentativa do “golpe de 08/01”
- Dejair Jorge Camargo Pereira
- 25 de set.
- 4 min de leitura
Atualizado: 14 de out.
Dejair Jorge Camargo Pereira, advogado jubilado (Master) e pós-graduado em Direito Processual

Justiça em Cena: Quando o Palco é Tribunal e o Texto já Está Escrito
No teatro da justiça contemporânea, o palco é o tribunal, mas o roteiro já vem pronto. O juiz não é mais o árbitro — é o diretor da peça. As testemunhas entram em cena com falas previamente delimitadas, e qualquer improviso é tratado como desacato. O espetáculo exige ordem, não verdade. E a plateia, silenciosa, assiste à encenação como quem consente.
A Constituição, esse velho dramaturgo esquecido, escreveu um texto que previa liberdade de expressão, contraditório e imparcialidade. Mas o script atual exige submissão. A divergência virou desvio. A crítica, ameaça. E o juiz, ao invés de garantir o palco para todas as vozes, escolhe quem pode falar — e o que pode ser dito.
Quando uma testemunha ousa interpretar os fatos com autonomia, o diretor interrompe a cena. “Comporte-se ou será preso” não é uma fala jurídica — é uma censura dramatúrgica. A verdade, nesse enredo, não é personagem principal. É o obstáculo que atrapalha o desfecho desejado.
O público, por sua vez, já se acostumou ao espetáculo. Aplaude a ordem, mesmo quando ela sufoca o debate. E talvez o maior risco não seja o autoritarismo explícito, mas a normalização da encenação. Porque, com perdão pela paráfrase, quando a justiça vira teatro, o Estado de Direito sai de cena — sem aplausos, sem resistência, e sem retorno.
Quando o Espetáculo Interrompe a Verdade
Foi durante o depoimento do ex-ministro Aldo Rebelo, em maio de 2025, que o teatro jurídico revelou sua face mais crua. Ao tentar oferecer uma leitura crítica dos eventos de 8 de janeiro, Rebelo foi interrompido pelo ministro Alexandre de Moraes com uma ameaça de prisão por desacato. Nenhuma injúria, nenhum desrespeito — apenas uma interpretação divergente. O palco não tolera improvisos.
A fala do magistrado — “O senhor está aqui como testemunha, e não como comentarista político” — não foi apenas uma correção de rumo. Foi um corte abrupto no fio da autonomia. A testemunha, ali, deixou de ser fonte de informação e passou a ser ré da narrativa. O processo, que deveria ser espaço de escuta, tornou-se um monólogo institucional.
O Direito como Cenário
A Constituição brasileira, que deveria ser o cenário sólido onde se desenrola o drama da justiça, foi tratada como pano de fundo decorativo. O artigo 5º, que garante o devido processo legal, foi ignorado como se fosse uma fala esquecida no script. O juiz, ao ameaçar punir uma testemunha por sua leitura dos fatos, não apenas rompeu com a imparcialidade — assumiu o papel de protagonista autoritário.
Não se trata de defender Rebelo ou de contestar o resultado do processo. Trata-se de lamentar que, para chegar a esse resultado, tenha sido necessário enterrar princípios fundamentais do Estado de Direito. A justiça não pode ser construída sobre o silêncio imposto nem sobre a domesticação da palavra.
O Caminho Importa
Não é o destino que está em julgamento — é o trajeto. O resultado do processo que apura a tentativa de golpe pode até ser juridicamente defensável. Mas quando o caminho até ele é pavimentado com intimidações, censuras e atropelos ao devido processo legal, o que se perde não é apenas a confiança na decisão — é a própria ideia de justiça.
A ameaça feita ao ex-ministro Aldo Rebelo, por expressar uma leitura crítica dos fatos, não foi um episódio isolado. Foi um sintoma. Um sinal de que o processo penal, em certos momentos, deixou de ser instrumento de apuração e passou a ser mecanismo de confirmação. A divergência virou desvio. A crítica, afronta. E o juiz, que deveria ser guardião da escuta, tornou-se vigia da narrativa.
A Última Cena: Silêncio ou Resistência?
O processo que deveria ser instrumento de justiça tornou-se palco de confirmação. A divergência foi tratada como desvio, e a palavra, como ameaça. O episódio envolvendo Aldo Rebelo não é um ponto fora da curva — é o reflexo de uma curva que se fecha sobre si mesma, onde o Estado já não escuta: apenas sentencia.
Mas há algo que ainda resiste. A palavra. A crítica. O texto. A Constituição. E, sobretudo, a consciência cidadã que se recusa a aceitar o espetáculo como verdade. Porque quando o juiz vira diretor, e o processo vira roteiro, cabe ao público — nós — interromper a encenação.
Não com gritos. Não com indignação performática. Mas com lucidez. Com memória. Com coragem de dizer que o caminho importa. Que a justiça não se mede apenas pelo resultado, mas pela fidelidade aos princípios que a sustentam.
E se a plateia seguir em silêncio, talvez o grito não seja mais “cortem-lhe a palavra” (como no caso Rebelo), mas algo mais sutil — e mais devastador: “sigam assistindo”.
O Rescaldo Jurídico: Reconstruir para Não Repetir
Se há algo que sobra, após o espetáculo jurídico e político do 8 de janeiro, é a tarefa árdua — e inadiável — dos operadores do Direito. Juízes, promotores, defensores, advogados e juristas em geral precisam assumir o papel de restauradores da ordem constitucional. Não para apagar os fatos, mas para evitar que se repitam.
O episódio foi um desastre institucional. E como todo desastre, exige rescaldo. É preciso reconstruir os princípios que foram soterrados — o contraditório, a imparcialidade, a liberdade de expressão, o devido processo legal. Não apenas no plano nacional, mas também em diálogo com os fundamentos do ordenamento jurídico internacional.
Essa reconstrução não será feita com indignação performática, nem com celebrações apressadas. Será feita com técnica, com ética e com coragem. Porque o Direito, quando bem exercido, não é instrumento de poder — é limite ao poder.






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